Copiado integralmente de Publico.pt, por Tiago Bartolomeu Costa
É o regresso aos solos de um coreógrafo que nunca pensou no colectivo senão como um encontro de indivíduos. Sem um tu não pode haver um eu estreia-se hoje, em Viseu.
Enquanto se observa no vídeo que passa na parede em frente, os ombros do coreógrafo e bailarino Paulo Ribeiro avançam sobre o linóleo do estúdio no último andar do Teatro Viriato, em Viseu. Depois a cabeça reage, a seguir as pernas rompem o imobilismo e, por fim, é a sua voz, grave, que quer participar num movimento que ainda só se anuncia.
Sem um tu não pode haver um eu é um regresso aos solos de um homem que procurou sempre, no interior das suas coreografias, perceber como podiam os indivíduos construir uma relação de intensa proximidade com o outro. O outro aqui era, pela lógica, o bailarino ao seu lado.
Mas, ao olharmos para os seus trabalhos, percebemos que os corpos que Paulo Ribeiro convocou sempre para palco eram corpos desejantes. Como acontece, por exemplo, praticamente nos extremos da sua criação: Jim (2012), a obra mais recente, abria com um solo do próprio coreógrafo, propondo uma revolução dançada ao jeito de cada um que, ao ser interpretada por vários bailarinos ao mesmo tempo, dava a sensação de ser a mesma a revolução que todos partilhavam; Sábado 2 (1995) propunha uma fusão dos corpos que parecia acreditar na possibilidade utópica da comunhão.
Corpos que viviam e admitiam morrer (assim era, por exemplo, em Tristes Europeus – Jouissez sans Entraves, 2001, momento elegíaco de um colectivo social por vir) porque, tal como reafirma o título desta nova peça, roubando uma frase ao realizador e encenador sueco Ingmar Bergman sobre a relação entre o artista e o público, "sem um tu não pode haver um eu".
É preciso recuar até 1991, ano de todos os começos, para encontrar o que ficou do outro lado espelho. Modo de Utilização, primeiro solo de Paulo Ribeiro, experimentava já a evocação de uma presença que queria sair do palco, que queria estender esse palco até à expectativa criada por quem o via. Um solo era, afinal, uma dança a dois – tal como uma dança a dois pode ser a mais solitária das danças (Malgré Nous, Nous Étions Là, com Leonor Keil, 2007).
Mas esse Modo de Utilização, uma espécie de ars poetica dançada, era peça de juventude, iniciática e, por isso mesmo, como escrevia André Lepecki na altura, no jornal Blitz, “às vezes tudo faz sentido, outras vezes há uma indefinição na personagem que nos é apresentada”. Passados 22 anos a indefinição é de outra ordem. Da ordem do sensível, do poético, já não tão especulativa, mas, ainda assim, livre, muito livre. Tão livre que podemos encontrar a mesma frase coreográfica interpretada, ao mesmo tempo, de modos diferentes, por um gesto nascido no pé e terminado na mão. É desta amplitude, desta espécie de tudo querer abraçar, que parte um solo que nos devolve um Paulo Ribeiro em forma, capaz de ocupar um espaço sem pedir meças a elementos acessórios.
E, por isso mesmo, o ponto de partida que foi a biografia de Bergman, Lanterna Mágica, é aqui mitigado, transformando-se numa sombra difusa, na memória auxilar de um movimento que se reinventa a cada suspensão e que insiste numa composição resiliente, crente na superação do gesto através do desejo pelo outro. “Ou morro, ou ela vai ser um estímulo dos diabos”, disse Bergman a uma das suas mulheres, no início de mais um casamento.
“Um estímulo dos diabos” também esta coreografia, “criação em tempos difíceis”, para recuperar o título original, que hoje se estreia em Viseu e em 2014 será apresentada nos teatros co-produtores: Centro Cultural de Belém (Lisboa), Teatro Nacional S. João (Porto) e Centro Cultural Vila Flor (Guimarães). Tempos difíceis porque colocam a pergunta: "Como se pode regressar ao solo quando se construiu, em colectivo, um discurso sobre a relação de dependência que sustenta a vida em comum?".
Para o coreógrafo trata-se não exactamente de um regresso às origens, mas de um recomeço, apenas possível porque se imagina como derradeiro. “É com estas palavras e as suas músicas que eu gostaria de voltar a dançar e talvez, desta vez sim, dançar pela última vez”, diz. Não se acredita que assim seja. Não é possível admitir que reclame para si esta presença e não deseje depois prolongá-la.
A chave está nas passagens da biografia de Bergman que Paulo Ribeiro sublinhou, pequenas marcas, pistas para uma coreografia em que, ao contrário do que acontecia nos solos das peças de grupo Masculine (2007) e Feminine (2008), que existiam na ambição de desaparecerem no interior de um gesto colectivo, o coreógrafo olha para si mesmo, para o que ainda é capaz de fazer e o surpreende, respondendo ao desafio do realizador sueco sem demoras: “Toma cuidado grandessíssimo malandro! Na minha próxima peça vou ajustar contas contigo."
O ajuste de contas é agora. E, assim, enquanto vai tirando o tapete a si mesmo, enquanto nos vai envolvendo com e num movimento que, mais do que se metamorfosear se alarga, conspira contra si mesmo e abandona todo o formalismo e toda a consciência da dor, é mais do outro que de si que fala. É mais o outro que dança.
“Dispus-me, portanto, a atacar os demónios que me torturavam”, diz Bergman. E então, percebemos: dança do exorcismo, coreografia da expiação, movimentos de abandono sim, mas não de retirada. Construção poética para um homem que nunca quis estar sozinho. Eis Paulo Ribeiro, com o mesmo movimento pequeno, nervoso, feito de choques e de confrontos, agora exposto em toda a sua vontade de deixar de olhar para os outros e começar a falar de si.
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